Imediatamente começa a chamada: “Fulano, presente; sicrano, etc.” Isso dura duas horas e tudo está em ordem. A seguir, a gente assiste às trocas de assinaturas entre as duas administrações, sobre uma mesinha trazida para o ato.
O Comandante Barrot, que possui tantos galões quanto o coronel, mas de cor dourada e não prateada, como na polícia, pega, por sua vez, o alto-falante:
– Deportados, daqui por diante é a palavra pela qual vocês serão sempre designados: deportado fulano ou deportado matrícula tal, conforme ela lhes for atribuída. Desde agora, encontram-se sob as leis especiais do degredo de forçados, seus regulamentos, seus tribunais internos, que adotarão, quando preciso, as decisões necessárias a respeito de vocês. Esses tribunais autônomos podem condená-los, pelos diferentes delitos cometidos no degredo, desde a simples prisão até a pena de morte. Está claro, as penas disciplinares, prisão e reclusão, são efetuadas nos diferentes locais que pertencem à administração. Os policiais, que vocês vêem à sua frente, se chamam vigilantes. Quando se dirigirem a eles, vocês dirão: “Senhor vigilante” ou “Senhor guarda”. Após a sopa, cada um de vocês receberá um saco de viagem com as roupas para o degredo. Tudo está previsto, não deverão ter outras roupas além destas aí. Amanhã embarcarão no La Martinière. Viajaremos juntos. Não se desesperem por partir, vocês ficarão melhor no degredo do que numa reclusão na França. Poderão falar, jogar, cantar e fumar, não devem temer violências, se se comportarem bem. Peço-lhes aguardar a chegada ao degredo para acertar as diferenças pessoais entre vocês. A disciplina durante a viagem deve ser muito severa, espero que compreendam isso. Se, entre vocês, há homens que não se sentem em condições físicas para fazer a viagem, que se apresentem na enfermaria, onde serão examinados pelos capitães médicos que acompanham o comboio. Eu lhes desejo uma boa viagem.
A cerimônia está terminada.
– Então, Dega, que é que acha disso?
– Papillon, meu velho, vejo que eu tinha razão quando lhe dizia que o maior perigo para a gente são os outros forçados. Isso que ele disse: “Esperem a chegada ao degredo para acertar suas diferenças” – diz tudo. Como deve haver assassinatos por aí!
– Não se preocupe com isso, vá por mim.
Procuro Francis la Passe e lhe falo:
– Seu irmão ainda é enfermeiro?
– Sim, ele não é um forçado, é um desterrado.
– Entre em contato com ele o mais depressa possível, peça para lhe dar um bisturi. Se ele quiser que a gente pague, você me diz quanto é, eu pago o que ele pedir.
Duas horas depois, eu estava de posse de um bisturi com um cabo de aço muito forte. Seu único defeito era ser um pouco grande, mas era uma arma de meter medo.
Sentei-me muito perto das privadas do centro do pátio e mandei procurar Galgani, para lhe entregar seu canudo, mas deve ser difícil encontrar o homem nessa barafunda movimentada que é o imenso pátio, abarrotado com oitocentos homens. Nem Julot, nem Guittou, nem Suzini foram vistos desde a nossa chegada.
A vantagem da vida em comum é que a gente vive, fala, pertence a uma sociedade, se é que isso pode ser chamado de sociedade. Há tanta coisa para falar, ouvir e fazer, que não se tem mais tempo para pensar. Ao constatar o quanto o passado vai-se apagando e passa a segundo plano com relação à vida do dia-a-dia, penso que, chegando ao degredo, a gente deve quase esquecer quem foi, por que foi parar ali e de que maneira, para só se ocupar com uma coisa: como cair fora. Eu me enganava, porque a coisa absorvente e mais importante é sobretudo se conservar vivo. Onde estão os tiras, os jurados, as sessões do tribunal, os magistrados, minha mulher, meu pai, meus amigos? Estão aqui, bem vivos, cada um com seu lugar no meu coração, mas a gente diria que – por causa da febre da partida, do grande salto no desconhecido, destas novas amizades e destes diferentes conhecimentos – eles não têm mais a importância de antes. Mas isso não é mais do que uma simples impressão. Quando eu quiser, no momento em que meu cérebro quiser abrir a gaveta que corresponde a cada um, eles estarão todos de novo presentes.
Aí vem Galgani, está sendo trazido para junto de mim porque, mesmo com seus óculos de grossas lentes, quase não enxerga. Parece melhor de saúde. Ele se aproxima de mim e, sem abrir a boca, me aperta a mão. Eu lhe digo:
– Gostaria de lhe devolver seu canudo. Você agora está bem, pode carregar e guardar o canudo. É uma responsabilidade grande demais para mim durante a viagem e não se sabe se a gente vai conseguir ficar um perto do outro e também se, no degredo, vamos nos ver. É melhor, então, que você leve o canudo de volta.
Galgani me olha com um ar infeliz.
– Vamos à privada, que lhe dou seu canudo.
– Não quero isso, guarde para você, dou de presente, é seu.
– Que é que há?
– Não quero ser assassinado por causa de meu canudo. Prefiro viver sem dinheiro a esticar a canela por causa dele. Dou para você porque, no final de contas, não há razão para que você arrisque a vida para guardar minha gaita. Pelo menos, se você arrisca, tira alguma vantagem.
– Está com medo, Galgani. Alguém ameaçou você? Tem gente desconfiando de que você anda carregado?
– Sim, sou constantemente acompanhado por três árabes. É por isso que nunca vim vê-lo, para que eles não desconfiem de que estamos ligados. Toda vez que vou à privada, seja de noite ou de dia, um dos três cabras vem se meter junto de mim. Como quem não quer nada, já mostrei a eles, às claras, que não estou carregado, mas eles não arredam pé. Estão pensando que um outro tem meu canudo, não sabem quem é e ficam na minha pista para ver em que momento o canudo voltará às minhas mãos.
Olho para Galgani e vejo que está aterrorizado, verdadeiramente aflito. Eu lhe digo:
– Qual é o lugar do pátio que eles freqüentam?
Ele me responde:
– Perto da cozinha e da lavanderia.
– Bem, fique aí, eu vou. Não, venha comigo também.
Vou com ele para o lado dos cabras. Tiro o bisturi de meu boné e o seguro com a lâmina por dentro de minha manga direita e o cabo em minha mão. Efetivamente, chegando ao lugar, eu os vejo. São quatro: três árabes e um corso, um chamado Girando. Compreendo tudo de um só golpe: foi o corso quem, deixado de lado pelos homens do submundo, soprou a história para os cabras. Ele deve saber que Galgani é o cunhado de Pascal Matra e que não é possível que não tenha o canudo.
– Então, Mokrane, vai levando?
– Sim, Papillon. E você, vai levando?
– Não, o negócio vai mal. Vim ver vocês para dizer que Galgani é meu amigo. O que acontecer a ele, o primeiro a pagar é você, Girando; depois, os outros. Entendam como quiserem.
Mokrane se levanta. É do mesmo tamanho que eu, 1 metro e 74 mais ou menos, e também é forte. A provocação desagrada-o e ele já vai fazer um gesto para começar a luta quando, rapidamente, tiro o bisturi reluzente e novinho em folha e, com ele na mão, digo:
– Dê um passo e morre que nem cachorro.
Desorientado por me ver armado num lugar onde a gente está sendo constantemente revistado, impressionado pela minha atitude e pelo comprimento da arma, ele diz:
– Eu me levantei para discutir, não para brigar.
Sei que não é verdade, mas é de meu interesse que ele não saia humilhado na frente de seus amigos. Ofereço uma saída elegante.
– Bem, já que você se levantou para discutir…
– Não sabia que Galgani era seu amigo. Pensava que era um otário e você deve compreender, Papillon, que, se a gente está depenado, o jeito é achar uma gaita para fugir daqui.
– Vá lá, isso é normal. Você tem o direito, Mokrane, de se defender. Só que já sabe que deste lado não dá pé. Vá se virar em outra banda.
Ele me estende a mão e eu aceito. Ufa! Livrei-me de uma boa, porque, se matasse o cara, não viajava amanhã. Um pouco mais tarde, percebi que tinha cometido um erro. Galgani volta comigo. Eu lhe digo: