A grande porta da Cidadela se abre e lentamente a coluna se põe em marcha. Na medida em que a gente vai saindo da fortaleza, policiais, de fuzil ou metralhadora na mão, juntam-se ao comboio, a 2 metros aproximadamente dele, e o acompanham assim. Uma multidão de curiosos é mantida afastada pelos policiais: vieram assistir à partida para o degredo. No meio do percurso, das janelas de uma casa assobiam suavemente entre os dentes. Levanto a cabeça e vejo numa janela minha mulher Nénette e Antoine D…, meu amigo; Paula, a mulher de Dega e Antoine Giletti em outra janela. Dega também os viu e nós marchamos com os olhos fixos nessa janela, durante todo o tempo que podemos. Será a última vez que verei minha mulher e também meu amigo Antoine, que morrerá, mais tarde, num bombardeio, em Marselha. Como ninguém fala, o silêncio é absoluto. Nem prisioneiro, nem vigilante, nem policial, nem público, ninguém perturba este momento verdadeiramente pungente em que todo mundo compreende que estes 1 800 homens vão desaparecer para sempre da vida normal
Subimos a bordo. Nós, os quarenta primeiros, somos dirigidos para o fundo do porão, para dentro de um cárcere cercado de barras grossas. Um cartão está afixado aí. Leio: “Sala n.° 1, 40 homens, categoria muito especial. Vigilância contínua e estrita”. Cada um recebe uma rede enrolada. Há anéis em quantidade para pendurar as redes. Alguém me abraça, é Julot. Ele está por dentro, porque já fez, há dez anos, a viagem. Sabe como se virar. Ele me diz:
– Depressa, venha por aqui. Dependure seu saco onde dependurar sua rede. Este lugar fica junto de duas vigias fechadas, mas, no mar, serão abertas e a gente vai respirar sempre melhor aqui do que em qualquer outro lugar do cárcere.
Eu lhe apresento Dega. Vamos começar a conversar, quando um homem se aproxima. Julot barra sua passagem com o braço e lhe diz:
– Não se meta nunca por aqui, se quer chegar vivo ao degredo. Manjou?
– Sim, diz o outro.
– Entende por quê?
– Sim.
– Então, cai fora.
O cara desguia. Dega fica feliz com esta demonstração de força e não o esconde:
– Com vocês dois, posso dormir sossegado.
Julot responde:
– Conosco, você está aqui mais em segurança do que numa casa de beira-mar que tenha uma janela aberta.
A viagem dura dezoito dias. Um único incidente: uma noite, um grande grito desperta todo mundo. Um cara é encontrado morto, com um facão plantado entre os ombros. A faca furou de baixo para cima e atravessou a rede, antes de atingi-lo. É uma arma de meter medo, tinha mais de 20 centímetros de comprimento. Imediatamente, 25 ou trinta vigilantes apontam para nós seus revólveres ou mosquetões, gritando:
– Todo mundo nu, e rápido!
Todo mundo fica nu. Compreendo que vai ser feita a revista. Boto o bisturi debaixo de meu pé direito desnudo, apoiando-me com mais força sobre minha perna esquerda do que sobre a direita, porque o metal me fere. Mas meu pé cobre o bisturi. Quatro vigilantes passam para dentro e começam a revistar os sapatos e as roupas. Antes de entrar, eles deixam de lado suas armas e os outros fecham atrás deles a porta da cela; mas, do lado de fora, estamos sempre sob vigilância, as armas apontadas para nós.
– O primeiro que se mexer morre – diz a voz de um chefe.
Na revista descobrem três facas, dois pregos de carpinteiro aguçados, um saca-rolhas e um canudo de ouro. Seis homens são levados para o corredor, sempre nus. O chefe do comboio; Comandante Barrot, chega acompanhado por dois médicos e pelo comandante do navio. Quando os guardas saem de nossa jaula, todo mundo torna a se vestir, sem aguardar ordem. Conservei o meu bisturi.
Os vigilantes se retiram para o fundo do corredor. No meio, Barrot, os outros junto da escada. Na frente deles, em linha, os seis homens nus, todos em posição de sentido.
– Isto é deste aqui – diz o guarda que fez a revista, apanhando uma faca e indicando o proprietário.
– É verdade, é minha.
– Bem – diz Barrot -, ele fará a viagem na cela que fica em cima das máquinas.
Cada um é indicado, seja pelos pregos, seja pelo saca-rolhas, seja pelas facas, e reconhece ser o proprietário do objeto encontrado. Sempre nus, sobem as escadas, acompanhados por dois guardas. Ficam no chão uma faca e o canudo de ouro: um único homem para os dois. É jovem, 23 ou 25 anos, bem constituído, 1 metro e 80 de altura pelo menos, um físico de atleta, olhos azuis.
– É seu, não é? – diz o guarda e lhe estende o canudo de ouro.
– Sim, é meu.
– Que é que contém? – pergunta o Comandante Barrot, que o pega entre as mãos.
– Trezentas libras inglesas, 200 dólares e dois diamantes de 5 quilates.
– Está bem, vamos ver.
Ele o abre. Como o comandante está cercado pelos outros, a gente não vê nada, mas se ouve dizer:
– Está certo. Seu nome?
– Salvidia Romeo.
– Você é italiano?
– Sim, senhor.
– Você não vai ser punido pelo canudo, mas pela faca, sim.
– Mas a faca não é minha.
– Não diga isso. Vejamos, eu a encontrei no seu sapato – diz o guarda.
– A faca não é minha, já disse.
– Então eu sou mentiroso?
– Não, o senhor se engana.
– Nesse caso, de quem é a faca? – pergunta o Comandante Barrot. – Se não é sua, deve ser de alguém, não é verdade?
– Não sei.
– Você quer me gozar? A gente acha uma faca no seu sapato e você não sabe de quem é? Acha que sou um imbecil? Ou é sua ou você sabe quem pôs lá. Responda.
– A faca não é minha e não me cabe dizer de quem é. Não sou delator. Será que tenho cara de tira?
– Vigilante, algeme este sujeito. Você vai pagar caro por esta manifestação de indisciplina.
Os dois comandantes falam entre si, o do navio e o do comboio. O comandante do navio dá uma ordem a um imediato, que sobe. Alguns instantes depois, chega um marinheiro bretão, verdadeiro colosso, com um balde de madeira, cheio de água do mar, sem dúvida, e uma corda grande, da grossura do punho. O homem é amarrado ao último degrau da escada, de joelhos. O marinheiro molha sua corda balde e depois bate pausadamente, com toda força, sobre as nádegas os rins e o dorso do pobre-diabo. Nem um grito sai dos seus lábios, o sangue corre das nádegas e das costas. Neste silêncio de cemitério, parte um grito de protesto de nosso cárcere:
– Bando de miseráveis!
Era só o que faltava para desencadear os gritos de todo mundo: “Assassinos! Porcos! Sujos!” Mais ameaçam atirar em nós se não nos calarmos, mais a gente berra, quando, de repente, o comandante grita:
– Mandem o vapor!
Dois marujos giram umas rodas e jatos de vapor caem sobre nós com uma potência tal, que, em menos de segundos, todo mundo está com a barriga no chão. Os jatos de vapor são projetados à altura do peito. Um pavor coletivo se apossa de todos. Os queimados não ousam se queixar; isso não dura mais de um minuto, mas aterroriza todo mundo.
– Espero que tenham compreendido, não é, seus cabeças-duras? Ao menor incidente, mando vapor. Entendido? Levantem-se!
Só três homens ficaram realmente queimados. São conduzidos à enfermaria. O flagelado é recolocado junto conosco. Seis anos depois, morreria numa tentativa de fuga comigo.
Durante estes dezoito dias de viagem, temos tempo para nos informar ou para tentar formar uma visão do degredo. Nada será como imaginamos, apesar de Julot ter procurado informar-nos o melhor possível. Por exemplo, já sabemos que Saint-Laurent-du-Maroni é um povoado a 120 quilômetros do mar, à margem de um rio chamado Maroni. Julot nos explica:
– É neste povoado que está a penitenciária, o centro do degredo de forçados. Neste centro é feita a triagem por categoria. Os desterrados vão diretamente para 50 quilômetros dali, uma penitenciária chamada Saint-Jean. Os forçados são imediatamente classificados em três grupos:
– Os muito perigosos, que serão chamados na hora da chegada e colocados nas celas do quartel disciplinar, na espera de sua transferência para as Ilhas da Salvação. Ficam aí internados para o resto da vida. Estas ilhas estão a 500 quilômetros de Saint-Laurent e a 100 quilômetros de Caiena. Elas se chamam: 1) Ilha Royale; 2) a maior, que é a Ilha de Saint-Joseph, onde está a reclusão do degredo; e 3) a Ilha do Diabo, a menor de todas. Os forçados não vão para a Ilha do Diabo, salvo exceções muito raras. Os homens da Ilha do Diabo são forçados políticos, em geral.