– Ah! Então não se mova e fale delicadamente. São vocês os três caras que fugiram do hospital?

– Somos.

– Quem é Papillon?

– Sou eu.

– Muito bem, você pode dizer que fez uma revolução na aldeia com sua fuga! A metade dos libertos está presa no quartel de polícia.

Ele se aproxima de mim e, abaixando o cano do fuzil para o chão, estende a mão para mim e diz:

– Sou o bretão mascarado, já ouviu falar de mim?

– Não, mas estou vendo que você não é um caçador de homens.

– Você tem razão, coloco armadilhas aqui para apanhar aves. O tigre deve ter comido uma, a não ser que tenham sido vocês.

– Fomos nós.

– Você quer café?

Num saco que ele carrega nas costas há uma garrafa térmica; ele me dá um pouco de café e toma também. Digo-lhe:

– Venha ver meus amigos.

Ele vem e se senta com a gente. Ri calmamente da história do fuzil e diz:

– Eu acreditei mesmo porque nenhum dos caçadores de homens quis vir procurar vocês; todo mundo acha que estão com um fuzil.

Explica que vive na Guiana há vinte anos e está livre há cinco. Tem 45 anos. Por causa dessa besteira que ele fez, de tatuar aquela máscara no rosto, a vida na França não lhe interessa. Adora a floresta e vive exclusivamente dela: pele de cobra, pele de tigre, coleção de borboletas e sobretudo a caça ao hocco vivo, o pássaro que nós comemos. Ele os vende a 200 ou 250 francos. Eu me ofereço para pagar, ele recusa, indignado. Conta-nos o seguinte:

– Esse pássaro selvagem é um galo do mato. Claro que ele nunca viu nem galinha, nem galo, nem homens. Bom, eu apanho um, levo até a aldeia e o vendo logo para alguém que tenha um galinheiro, porque ele é muito procurado. Bom. Sem cortar as asas, sem fazer nada, você o coloca à tardinha, no princípio da noite, dentro do galinheiro e de manhã, quando a gente abre a porta, ele fica plantado na frente e parece que conta as galinhas e os galos que vão saindo. Ele os segue e, comendo com eles, olha com os olhos bem abertos para todos os lados, para baixo, para cima, nos arbustos em volta. É um cão de guarda sem igual. De noite, fica na porta e não se entende como sabe quando falta uma galinha ou duas, mas sabe, e vai procurá-las. E, galo ou galinha, ele os bota para dentro a grandes golpes de bico, para ensiná-los a chegar na hora. Mata ratos, cobras, aranhas, musaranhos, centopeias e, assim que uma ave de rapina aparece no céu, manda todo mundo se esconder no meio do capim, enquanto ele a enfrenta. Nunca mais sai do galinheiro. Esse pássaro extraordinário, nós o comemos como um galo vulgar. O bretão mascarado diz que Jesus, Enflé e mais uns trinta libertos estão na cadeia, no posto de polícia de Saint-Laurent, onde iam olhar os libertos para ver se reconheciam alguém que rondava em volta do prédio de onde nós saímos. O árabe está na masmorra do posto, incomunicável, acusado de cumplicidade. As duas pancadas que levou não provocaram ferimento algum, enquanto os guardas têm um ligeiro inchaço na cabeça. “Eu não fui incomodado porque todo mundo sabe que nunca me preocupei em preparar uma fuga.” Diz que Jesus é um grandessíssimo porco. Quando falo do barco, ele quer vê-lo. Depois de examiná-lo, exclama:

– Mas ele ia matar vocês, esse cara! Nunca essa canoa agüentaria mais de uma hora no mar. Com a primeira onda um pouco forte, quando bater o fundo na água, vai se partir em dois. Jamais embarquem nisso aí, é um suicídio.

– E então, o que é que vamos fazer?

– Você tem um pouco de grana?

– Tenho.

– Vou-lhe dizer o que é que você deve fazer, e mais do que isso, vou ajudar você, você merece. Vou ajudar você e seus amigos a saírem dessa e não quero nada.

“Não devem chegar perto da aldeia de jeito nenhum. Para arranjar uma boa embarcação, precisam ir até a Ilha dos Pombos. Nessa ilha se encontram uns duzentos leprosos. Não existem guardas e nenhuma pessoa sadia vai até lá, nem o médico. Todos” os dias, uma barca leva os mantimentos para 24 horas, crus. O enfermeiro do hospital manda uma caixa de medicamentos aos dois enfermeiros, também leprosos, que tomam conta dos doentes. Ninguém, nem guarda, nem caçadores de homens, nem padre, desce na ilha. Os leprosos vivem numas palhoças pequenininhas construídas por eles mesmos. Têm um salão onde se reúnem. Criam galinhas e patos que servem para melhorar o trivial. Oficialmente, não podem vender nada fora da ilha, mas traficam clandestinamente com Saint-Laurent, Saint-Jean e os chineses de Albina, na Guiana Holandesa. São todos assassinos perigosos. Raramente se matam entre si, mas praticam inúmeras malvadezas quando saem clandestinamente da ilha, aonde voltam para não serem presos pelos crimes cometidos. Para essas excursões têm alguns barcos, roubados na aldeia vizinha. O crime maior é ter um barco. Os guardas atiram em todo barco que entra ou sai da Ilha dos Pombos. Os leprosos afundam seus barcos, enchendo-os de pedras: quando precisam de uma embarcação, mergulham para tirar as pedras e a barca vem à tona. Tem de tudo na ilha, de todas as raças e de todas as regiões da França. Conclusão: sua canoa só serve dentro do Maroni e, ainda assim, pouco carregada. Para entrar no mar, precisa encontrar outro barco, e o melhor é ir até a Ilha dos Pombos.

– Como éque a gente faz?

– Olhe. Eu vou acompanhar você pelo rio até avistar a ilha. Você não a encontraria ou poderia errar. Ela fica a mais ou menos 150 quilômetros da embocadura; é preciso, então, voltar para trás. Essa ilha fica longe de Saint-Laurent, a mais de 50 quilômetros. Vou deixá-lo o mais próximo possível; depois, passo para a minha canoa, que vamos rebocar, e você se vira na ilha.

– Por que é que você não vem até a ilha com a gente?

– Barbaridade – diz o bretão -, só botei o pé um dia no pontão onde oficialmente atraca o barco da administração. Era dia claro e, portanto, o que vi foi bastante para mim. Desculpe, Papi, mas nunca mais na minha vida vou botar os pés naquela ilha. Inclusive, seria incapaz de vencer minha repulsão perto deles, falando e tratando com eles. Eu seria mais prejudicial do que útil.

– Quando vamos partir?

– À noitinha.

– Que horas são, bretão?

– Três horas.

– Bom, vou dormir um pouco.

– Não, você precisa carregar tudo e arrumar na canoa.

– Não, eu vou com a canoa vazia e volto para procurar Clousiot, que vai ficar aqui para vigiar as coisas.

– Impossível, você nunca poderá encontrar o lugar, mesmo em pleno dia. E, de dia, de maneira nenhuma você deve ficar no rio. A caça contra vocês não acabou. O rio ainda é muito perigoso.

Chega a noite. Ele vai buscar sua canoa, que amarramos atrás da nossa. Clousiot fica perto do bretão, manejando a pá do leme, Maturette no meio, eu na frente. Saímos com dificuldade da enseada e, quando desembocamos no rio, a noite vai caindo. Um sol imenso, de um vermelho pardacenta, incendeia o horizonte no mar. Mil fagulhas, como as de um enorme fogo de artifício, lutam entre si para serem as mais intensas, as mais vermelhas entre as vermelhas, as mais amarelas entre as amarelas, as mais matizadas nas partes onde as cores se misturam. Vemos claramente, a 20 quilômetros na nossa frente, o estuário desse rio majestoso que se precipita todo cintilante de lantejoulas rosadas dentro do mar. O bretão diz:

– É o fim da vazante. Dentro de uma hora teremos a maré montante; vamos aproveitá-la para subir o Maroni e assim, sem esforço, empurrados por ela, iremos bem rápido até a ilha.

A noite cai de repente.

– Para frente – diz o bretão. – Vamos remar com força, para pegar o meio do rio. Não fumem mais.

As pás dos remos entram na água e nós voamos, cortando a correnteza rapidamente, chuá, chuá, chuá. Bem cadenciados, eu e o bretão puxamos sincronizadamente os remos. Maturette faz o que pode. Quanto mais avançamos para o meio do rio, mais sentimos que a maré nos empurra. Deslizamos rapidamente, percebe-se a mudança a cada meia hora. A maré aumenta de força e nos arrasta sempre mais depressa. Depois de seis horas, estamos bastante perto da ilha. Vamos direto para cima: uma grande mancha, quase no meio do rio, levemente para a direita. “É lá”, diz em voz baixa o bretão. A noite não está muito negra, mas deve ser difícil nos enxergarem de longe, por causa da neblina na superfície do rio. Vamos chegando. Quando distinguimos melhor a silhueta das rochas, o bretão passa para a sua canoa, desamarra-a rapidamente da nossa e diz simplesmente, em voz baixa:


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