Henri Charrière
Papillon
© 1970
Ao povo venezuelano,
aos seus humildes pescadores do
golfo de Paria,
a todos, intelectuais, militares e outros,
que me deram uma oportunidade de reviver
à Rita, minha mulher, minha melhor amiga
1 O CAMINHO DA PODRIDÃO
Foi um trompaço tão forte, que só me levantei da queda treze anos mais tarde. Com efeito, não foi um bofetão comum. Para desfechá-lo foi preciso se juntar muita gente
É o dia 26 de outubro de 1932. Tiraram-me às 8 da manhã da cela que ocupo faz um ano na prisão da Conciergerie. Estou barbeado, com boa cara, vestindo meu terno cortado por um bom alfaiate. Camisa branca e gravata borboleta azul-pálido dão o último toque de elegância à minha roupa.
Tenho 25 anos, mas aparento apenas vinte. Os guardas, um tanto impressionados pela minha figura de gentleman, tratam-me cortesmente. Tiraram-me até as algemas. Estamos todos os seis, cinco guardas mais eu, sentados em dois bancos numa sala nua. À nossa frente, uma porta que deve comunicar com a sala do tribunal do júri, pois estamos no Palácio da Justiça do Departamento do Sena, em Paris.
Dentro de alguns instantes, serei julgado por homicídio. Meu advogado, Raymond Hubert, veio cumprimentar-me: “Não há qualquer prova contra você, tenho confiança, seremos absolvidos”. Acho graça nesse “seremos”. Como se ele, o Dr. Hubert, fosse comparecer perante o tribunal como culpado e, se houvesse condenação, também tivesse que sofrê-la.
Um porteiro abre a porta e nos faz passar. Pelos dois batentes escancarados, enquadrado pelos quatro guardas e o sargento, penetro numa sala imensa. Para me aplicar a bofetada, eles cobriram tudo de pano vermelho-sangue: tapetes, cortinas nas altas janelas e até mesmo os magistrados que logo mais vão-me julgar.
– Senhores, a corte!
De uma porta à direita surgem, um após outro, seis homens: o presidente, acompanhado de cinco magistrados. Na poltrona central fica o presidente, à direita e à esquerda estão seus assessores.
Silêncio impressionante na sala. Todos estão de pé. Os juizes se sentam e todo mundo faz o mesmo.
O presidente, sujeito bochechudo e corado, aparência austera, me fixa os olhos sem deixar transparecer qualquer sentimento. Chama-se Bevin. A seguir, ele vai começar a dirigir os debates com imparcialidade e, pela sua atitude, fará todos compreenderem que ele, magistrado de carreira, não está muito convencido da sinceridade das testemunhas e dos policiais. Não, ele não terá responsabilidade alguma no bofetão; será apenas o encarregado de desfechá-lo.
O promotor é o Dr. Pradel, um promotor muito temido por todos os advogados da Vara Criminal. Goza da triste fama de ser o maior fornecedor de carne humana para a guilhotina e as penitenciárias da França e do Ultramar.
Pradel representa a vindita pública. É o acusador oficial e nada tem de humano. Simboliza a Lei; é ele quem maneja a Balança e faz sempre o possível para que ela se incline para o seu lado. Com seus olhos de abutre e abaixando um pouco as pálpebras, olha intensamente para mim, de todas as suas alturas. Primeiro, a altura da poltrona, que o coloca mais alto que eu; depois, a da sua própria estatura, 1 metro e 80 pelo menos, ostentada com arrogância. Não tira seu manto vermelho, mas coloca o chapéu sobre a mesa, na qual apóia as duas mãos enormes como pás de bater roupa. Uma aliança indica que é casado e, no dedinho, à guisa de anel, traz um cravo de ferradura polido e brilhante.
Inclina-se um pouco sobre mim para melhor me dominar. Parece estar dizendo:
“Meu velho, se você pensa que pode escapar, está muito enganado. Não percebe que as minhas mãos são garras e as unhas que vão despedaçá-lo estão muito bem implantadas em minha alma. E, se sou temido por todos os advogados e cotado na magistratura como promotor perigoso, é porque jamais deixo escapar minha presa.
“Não quero saber se você é culpado ou inocente, quero apenas utilizar tudo o que existe contra você: sua vida boêmia em Montmartre, os testemunhos forçados pela polícia e as declarações dos próprios policiais. Com esse monte de sujeiras acumulado pelo juiz de instrução, tenho que pintar seu retrato tão repelente, que os jurados o farão desaparecer da sociedade.”
Parece que o estou ouvindo falar nitidamente, salvo se eu estiver sonhando, pois sinto-me verdadeiramente impressionado por esse devorador de homens:
“Deixe que eu o conduza, acusado, e sobretudo não procure se defender: eu o levarei pelo ‘caminho da podridão’.
“E espero que não acredite na benevolência dos jurados. Não se iluda, esses doze homens nada conhecem da vida.
“Olhe para eles, alinhados à sua frente. Olhe para esses doze patetas que Paris importou de afastadas vilas da província. São pequenos-burgueses, aposentados, comerciantes. Não adianta descrevê-los melhor. Não vai querer que eles compreendam os 25 anos que você tem e a vida que você leva em Montmartre. Para eles, Pigalle e a Place Blanche são o inferno e todas as pessoas que vivem à noite são inimigas da sociedade. Estão orgulhosos por serem jurados no tribunal do Sena. Além disso, garanto que se sentem frustrados pela vida que levam como pequenos burgueses.
“E você aí, jovem e bonito, pode ficar sabendo que não vou ter escrúpulos em pintá-lo como um Don Juan noturno de Montmartre. Assim, logo de saída, transformarei esses jurados em inimigos seus. Você está muito bem vestido, deveria ter vindo com roupas esfarrapadas. Foi um grande erro de tática. Não vê que eles têm inveja da sua roupa? Eles sempre usaram roupas feitas e jamais se viram vestidos por um alfaiate, nem mesmo em sonhos”.
São 10 horas e os debates se abrem. Na minha frente, seis magistrados, entre eles um promotor agressivo, que utilizará todo o seu poder maquiavélico, toda a sua inteligência, para convencer aqueles doze palhaços de que sou culpado e que o veredicto só pode ser a prisão perpétua ou a guilhotina.
Vou ser julgado pela morte de um protetor de batotas, rufião e dedo-duro da boca do lixo de Montmartre. Não há prova alguma, mas os policiais – promovidos a cada vez que descobrem o autor de um delito – vão sustentar que sou eu o culpado. Não tendo provas, vão jurar que possuem informações “confidenciais”, que não deixam qualquer dúvida. Uma testemunha preparada por eles, verdadeiro disco gravado na Chefatura de Polícia, um homem chamado Polein, será a peça mais eficiente da acusação. Como sustento que não o conheço, o presidente, em dado momento, me pergunta, muito imparcialmente:
– Você diz que a testemunha está mentindo. Muito bem. Mas por que estaria mentindo?
– Senhor presidente, se eu passo noites sem dormir desde que fui preso, não é de remorso pelo assassínio de Roland le Petit, pois não fui eu. É justamente porque eu procuro saber o motivo que levou essa testemunha a ficar tão encarniçadamente contra mim. Cada vez que a acusação fraquejava, ele vinha com novos elementos para reforçá-la. Cheguei à conclusão, senhor presidente, de que a polícia o pegou num flagrante muito sério e que fez um acordo com ele: “Vamos esquecer o caso, mas você tem que acusar o Papillon”.