Na manhã seguinte, é ainda noite quando toca o clarim. Todos se levantam, se lavam e se vestem. Dão-nos café e pão. Uma tábua está pregada à parede e serve para a gente botar o pão, o prato e o resto das coisas. Às 9 horas entram dois vigilantes e um forçado, jovem vestido de branco sem listras. Os dois guardas são corsos e falam em corso com forçados conterrâneos. Durante este tempo, o enfermeiro passeia pela sala. Chegando junto de mim, diz:

– Como vai isso, Papi? Não me reconhece?

– Não.

– Eu sou Sierra, de Argel, conheci você na casa de Dante, em Paris.

– Ah, sim, agora me lembro. Mas você viajou em 29, já estamos em 33 e você continua sempre por aqui?

– Sim, a gente não se livra desta situação tão depressa. Finja que está doente. E ele, quem é?

– Dega? É meu amigo.

– Inscrevo ele também na consulta. Você, Papi, tem diarréia. E você, velhinho, está com crises de asma. A gente se vê na consulta das 11 horas, tenho coisas a falar com vocês.

Ele vai aos que levantam o dedo e os inscreve. Quando torna a passar à nossa frente, está acompanhado por um dos vigilantes, queimado de sol e muito velho.

– Papillon, apresento-lhe meu chefe, o vigilante enfermeiro Bartiloni. Senhor Bartiloni, estes dois são os meus amigos, de quem falei ao senhor.

– Está bem, Sierra, a gente arranja tudo na consulta, conte comigo.

Às 11 horas chegam para nos buscar. Somos nove doentes. Vamos a pé, entre os barracões. Chegando diante de um barracão mais novo e o único pintado de branco com uma cruz vermelha, entramos numa sala de espera, onde se acham uns sessenta homens. A cada canto da sala, dois vigilantes. Sierra aparece, vestido com uma blusa imaculada de médico. Ele diz: “Você, você e você, venham”. Entramos numa sala e logo vemos que é o gabinete do médico. Ele fala aos três velhos em espanhol. Reconheço imediatamente um espanhol: é Fernández, que matou três argentinos no café Madrid, em Paris. Depois que conversam um pouco, Sierra o faz passar para uma privada, que dá para a sala, e vem até nós:

– Papi, deixe que eu abrace você. Estou contente de poder prestar um grande serviço, a você e ao seu amigo: os dois estão internados… Ah! Esperem eu falar! Você, Papillon, perpétua, e você, Dega, cinco anos. Têm gaita?

– Sim.

– Então me dêem 500 francos cada um e, amanhã pela manhã, estarão hospitalizados, você por diarréia. E você, Dega, de noite, bata à porta, ou, melhor ainda, algum de vocês chama o guarda e pede o enfermeiro, dizendo que Dega está morrendo de falta de ar. Do resto, eu me encarrego. Papillon, peço-lhe só uma coisa: se houver Problema, avise a tempo, que irei ao seu encontro. No hospital, por 100 francos semanais cada um, vocês vão poder ficar durante um mês. A coisa tem de ser feita depressa.

Fernández sai da privada e entrega, na nossa frente, 500 francos a Sierra. Eu entro também na privada e, quando saio, entrego-lhe não 1 000, mas 1 500 francos. Ele recusa os 500 francos. Não quero insistir. Ele me diz:

– Estes cobres, que você me dá, são para o guarda. Não levo nada para mim. Somos amigos ou não?

No dia seguinte, Dega, eu e Fernández estamos numa cela imensa, dentro do hospital. Dega foi hospitalizado no meio da noite. O enfermeiro da sala é um tipo de 35 anos, que a gente chama Chatal. Tem todas as instruções de Sierra para nós três. Quando o médico passar, apresentará um exame de fezes onde eu aparecerei podre de amebas. Para Dega, dez minutos antes da consulta, ele queima um pouco de enxofre, que lhe forneceram, e manda ele respirar o gás com um pano na cabeça. Fernández sente enorme alegria: ele cortou a pele no interior da bochecha e soprou o mais possível durante uma hora. Fez isso tão conscientemente, que a inchação cresceu ao ponto de tapar um olho. A cela fica no primeiro andar de um edifício, onde estão uns setenta doentes, muitos de diarréia. Pergunto ao enfermeiro onde está Julot. Ele me diz:

– Justamente no edifício defronte. Quer que lhe diga alguma coisa?

– Sim. Diga-lhe que Papillon e Dega estão aqui, que ele apareça na janela.

O enfermeiro entra e sai da sala quando quer. Para isso, não precisa mais do que bater à porta e um árabe abre. É um guarda-chaves, um forçado que serve de auxiliar aos vigilantes. Nas cadeiras, à direita e à esquerda, ficam sentados três vigilantes, mosquetão nos joelhos. As grades da janela são trilhos de estrada de ferro e eu me pergunto como é que se faz para cortar isso. Sento-me junto à janela.

Entre o nosso edifício e o de Julot há um jardim cheio de flores alegres. Julot aparece na janela, uma lousa na mão, sobre a qual escreve com giz: “VIVA”. Uma hora depois, o enfermeiro me traz uma carta de Julot. Ele me escreveu: “Estou procurando dar um pulo à sua sala. Se fracassar, tentem vir à minha. O motivo é que vocês têm inimigos na sua sala. Como é, estão internados? Ânimo, dará tudo certo”. O incidente da Central de Beaulieu, onde sofremos juntos, ligou-nos muito um ao outro. Julot era o especialista do bastão de madeira e por isso foi apelidado de “homem do martelo”. Ele chegava num carro diante de uma joalheria, em pleno dia, no momento em que as mais belas jóias estavam em exposição nos seus estojos. O carro, guiado por um outro, parava, deixando o motor ligado. Julot descia rapidamente, munido de um grosso bastão de madeira, punha abaixo a vitrina com um só golpe, apanhava a maior quantidade possível de estojos e voltava ao carro, que disparava a toda velocidade. Depois de ter sido bem sucedido em Lyon, Angers, Tours, Le Havre, deu o golpe numa grande joalheria de Paris, às 3 da tarde, levando quase 1 milhão em jóias. Nunca me contou por que e como foi identificado. Foi condenado a vinte anos e se evadiu ao fim de quatro. E foi ao regressar a Paris, conforme nos contou, que de novo o prenderam: estava atrás de seu receptador, para assassiná-lo, porque este não entregou à sua irmã uma grande soma de dinheiro que lhe devia. O receptor o viu vagando na rua onde morava, e avisou a polícia. Julot acabou em cana e regressou ao degredo conosco.

Já há uma semana que estamos no hospital. Ontem entreguei 200 francos a Chatal, é o preço por semana para nos manter, nós dois, no hospital. Para conquistar amizades, damos fumo a todos que não têm. Um forçado de sessenta anos, um marselhês chamado Carora, se fez muito amigo de Dega. Ele é seu conselheiro. Diz várias vezes por dia que, se tiver muito dinheiro e isso for sabido no povoado (pelos jornais chegados da França, sabe-se dos casos grandes), é melhor que ele não se evada, porque os libertos irão matá-lo para roubar seu canudo. Dega me conta estas conversas com o velho Carora. Sou obrigado a lhe dizer que o velho é certamente um galinha-morta, pois já está aqui há vinte anos, mas ele não me dá atenção. Dega está muito impressionado com a conversa fiada do velho e eu tenho de me esforçar para sustentar seu ânimo e o meu.

Mandei passar um bilhete a Sierra, para que traga Galgani. A coisa não demora. No dia seguinte, Galgani está no hospital, mas fora das grades. Como fazer para lhe entregar seu canudo? Digo a Chatal que tenho necessidade imperiosa de falar com Galgani, dou a entender que é uma preparação de fuga. Ele me diz que pode trazer Galgani precisamente cinco minutos antes do meio-dia. Na hora da mudança da guarda, ele o fará subir para a varanda e falar comigo na janela, e isso sem cobrar nada. Galgani é trazido à janela ao meio-dia, eu boto o canudo diretamente em suas mãos. Ele introduz o canudo no rabo, em pé, na minha frente, e chora. Dois dias depois, eu recebi uma revista enviada por ele, com cinco notas de 1 000 francos e uma única palavra: “Obrigado”.

Chatal, que me entregou a revista, viu o dinheiro. Ele não me fala nisso, mas eu insisto em lhe oferecer alguma coisa. Ele recusa. Eu lhe digo:

– Nós queremos cair fora. Quer ir conosco?

– Não, Papillon, tenho outro compromisso, só vou tentar a evasão dentro de cinco meses, quando meu parceiro estiver libertado. A fuga vai ser mais bem preparada e será mais segura. Você, como está internado, compreendo que esteja com pressa, mas sair daqui, com estas grades, vai ser duro. Não conte comigo para lhe dar uma mão, não quero arriscar meu lugar. Aqui, espero que meu amigo saia.


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